Joaquim Maria Botelho

O jornalista Joaquim Maria Botelho fala
sobre a folclorista Ruth Guimarães

"Aos cinco anos ela já conseguia ler longos trechos de livros, encantando a todos pela precocidade. Brincava com os filhos dos trabalhadores e deles ouvia causos, fábulas, histórias de príncipes e histórias de assombração"
(Joaquim Maria Botelho)

Como sua mãe, Ruth Guimarães, virou uma especialista em folclore brasileiro?
   Minha mãe morou numa fazenda no Sul de Minas, na zona rural da cidade de Pedralva, entre os cinco e os nove anos de idade. Seu pai era o administrador. Homem entusiasmado pela leitura, contava histórias, lia para ela e a estimulou desde pequena a folhear livros e jornais. Aos cinco anos ela já conseguia ler longos trechos de livros, encantando a todos pela precocidade. Brincava com os filhos dos trabalhadores e deles ouvia causos, fábulas, histórias de príncipes e histórias de assombração.
   Foi levada para viver com os avós, em Cachoeira Paulista, porque perto da fazenda não havia escola para a sua idade. Ouvindo as histórias contadas pelos avós, José e Honória, foi reunindo uma coleção de contos da tradição oral. Aos dez já publicava poemas no jornal da cidade, e antes dos 17 começou a escrever, também para o jornal, histórias de que se lembrava.

Ela não ficava com medo das histórias de assombração?
   Sim! Ela até diria, mais tarde, que as histórias de assombração, lobisomens, mulas sem cabeça e bruxas povoavam de medo a sua memória. Para se libertar desse medo, começou a reunir em livro todas elas. Aos 20 anos, já morando em São Paulo e trabalhando, mostrou seu trabalho para um escritor famoso na época, Amadeu de Queiroz, que recomendou que ela fosse visitar Mário de Andrade, para que ele a orientasse sobre como organizar, com técnicas de pesquisa de folclore, o material que havia recolhido.

Nossa! Então ela conheceu Mário de Andrade?
   Conheceu e durante anos visitou a casa dele, à Rua Lopes Chaves, como sua aluna. Com Mário de Andrade ela aprendeu a buscar a melhor fundamentação bibliográfica, a fazer referências das fontes orais consultadas. Mas, antes que o livro “Filhos do Medo” estivesse pronto, Mário de Andrade morreu (1945).
   Minha mãe foi desafiada a publicar um romance que já estava meio escrito. O romance, que se chamou “Água Funda”, foi lançado em 1946, e fez grande sucesso junto à crítica e ao público. O importante livro de pesquisa folclórica, “Filhos do Medo”, acabou sendo publicado apenas em 1950.

Fundamentação bibliográfica: pesquisar em livros.
Fontes orais consultadas: as pessoas que contaram as histórias ouvidas pela autora.
“Fonte” é de onde descobrimos alguma informação.

É verdade que ela ganhou prêmios por este seu trabalho?
   Sim, é verdade. Como ganhou muito prestígio no meio dos estudiosos do folclore, foi convidada para dar uma palestra no I Congresso Brasileiro de Folclore, no Rio de Janeiro, em 1951. Durante o encontro, fez amizade com Luís da Câmara Cascudo, entre outros folcloristas importantes.

Onde ela nasceu e quando?
   Ruth Guimarães nasceu em Cachoeira Paulista, na então Rua do Aterro, sem número (hoje Rua Carlos Pinto, 130), em 1920. Nasceu no dia de Santo Antonio, 13 de junho. Talvez por causa disso, gostava de fazer uma fogueira na noite do aniversário, e reunia a criançada para contar histórias.
   Ela dizia assim: “Em muitos lugares brasileiros, ainda persiste o costume de contar histórias. Em geral, em torno de uma fogueira. É só ficar de mão no queixo, sentado em cima das toras, escutando. O círculo das caras atentas arde ao calor das chamas. Todos se voltam para o narrador, num tropismo original. Não é que o tempo esteja sobrando, não é isso. Em verdade, não existe mais o tempo. Acabou-se o seu império sobre os homens. Não se cuida nem da hora, nem do correr dos instantes. O tempo é o fluir da história. Tempo e espaço se contam na vida dos príncipes e das princesas e do seu povo encantado.

Tropismo: o que faz as plantas crescerem na direção da luz, por exemplo.
(Aqui a autora compara as crianças voltadas ao narrador com as plantas voltadas à luz do sol).

Conte um pouco sobre a carreira dela
   Com a publicação do romance “Água Funda”, quando contava apenas 26 anos, ela ganhou tanta expressão no meio literário que a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP a dispensou de exame de ingresso no Curso de Letras Clássicas. Especializou-se em Língua Portuguesa, Latim e Grego, e foi lecionar. Mas, nos intervalos, escrevia e traduzia, principalmente para a Editora Cultrix, e publicava reportagens sobre temas do folclore brasileiro na Revista do Globo.
   Traduziu, do francês, clássicos como Dostoiévski, Tchekov, Alphonse Daudet e outros. Traduziu do latim o livro “O asno de ouro”, de Apuleio. Também escrevia reportagens para a Revista do Globo, textos literários para a Revista Roteiro e Correio Paulistano. Durante anos foi cronista do jornal Folha de S. Paulo, escrevendo às quartas-feiras, alternando-se com Cecília Meireles e Carlos Heitor Cony. Ao longo de toda a sua vida, publicou 51 livros. Em 2008, foi eleita para a cadeira 22 da Academia Paulista de Letras.

Lecionar: dar aulas, ser professora (professor).

Que livros sobre folclore Ruth Guimarães escreveu?
   O principal foi “Filhos do Medo”. Mas também publicou pesquisa sobre “Medicina Mágica”, pela Editora Global. Pela Editora Cultrix, escreveu “Lendas e Fábulas do Brasil”. Pela JAC Editora, “Calidoscópio – a saga de Pedro Malazartes”. Pela Editora Usina de Ideias, “Histórias de Onça” e “Histórias de Jabuti”. Participou também de coletâneas editadas pelo CERLAL, da Unesco, sobre folclore latino-americano. Há ainda outros, de menor expressão.

Quais eram as histórias preferidas dela?
   Minha mãe era apaixonada pela literatura de Machado de Assis. Mas, entre as histórias infantis, gostava muito de uma que se chama “João Barandão”, que, aliás, está no livro “João Barandão e outras histórias”, publicado pela Editora Acatu. Também gostava muito de “Os dois papudos”. São duas histórias do folclore brasileiro.

Como foi a sua infância, com uma mãe contadora de histórias?
   Não só contadora de histórias, mas que lia para nós, crianças. Vivíamos ouvindo mamãe declamar poemas e contar histórias. Já mais crescido, foi a minha vez de contar histórias para os meus irmãos menores. Nossa casa era cheia de livros, em todos os cantos imagináveis. No meu aniversário de 10 anos, recebi de presente da minha mãe uma coleção de 13 volumes do Tarzan, de Edgar Rice Burroughs – era uma disputa, porque meus tios pediam emprestados para ler também.
   Estávamos tão ligados com a literatura, em casa, que uma professora minha, do segundo ano do primeiro grau, contou à minha mãe que ficou impressionada com uma redação que fiz, aos sete anos, contando que as “ovelhas baliam”. Era um repertório que poucas crianças tinham – e talvez tenham ainda – dificuldade de obter, se não houver estímulos das famílias.

Você tem a sua história ou curiosidade favorita?
   Eu sou curioso por natureza. Tanto que acabei sendo jornalista. Mas, de pequeno, lembro-me de uma adaptação que mamãe fez do conto “Suave Milagre”, de Eça de Queiroz. Era um texto para ser usado como peça de teatro, nas escolas, todo em forma de poema. Lindo. Representávamos em casa, com os irmãos.

Sua família é grande? Você tem irmãos?
   Fomos nove irmãos. Eu sou o quarto. Perdemos os três mais velhos, em anos seguidos (1970, 1971 e 1972) e eu virei o mais velho aos 17 anos. Antes disso eu já era o que cuidava dos menores, fazia comida, lavava louças e roupas, trocava fraldas dos mais novos. Três dos irmãos eram portadores da Síndrome de Alport, por isso eram surdos e, em decorrência, mudos.
   Contei a saga de uma das irmãs, a última a ter a síndrome, no meu “O livro de Rovana”, que fez bastante sucesso. Tudo isso me deixa impressionado – mamãe e papai trabalhavam feito loucos: ela lecionando, escrevendo e traduzindo e ele fotografando e lecionando. E ainda arranjavam tempo de estar com os filhos, faziam piqueniques, levavam-nos a museus, teatros, concertos sinfônicos.

Como sua mãe conseguia dar conta de tantas tarefas e suas pesquisas, seu trabalho?
   Ela dizia, depois de aposentada, que passou a vida levantando-se de madrugadinha, para chegar em tempo em sala de aula, “mas contrariada”. Na realidade dormia pouco. Ficava até tarde da noite escrevendo, anotando, lendo. Acordava muito cedo. Lembro-me de que, aos 10 anos, eu ia para a escola de manhã e ela para outra. Por volta das 11 horas chegávamos os dois, preparávamos juntos o almoço, todo mundo comia, os mais novos iam para a escola e eu e ela nos sentávamos na sala.
   Ela ia escrevendo e o meu papel era ler livros mais simples sobre a Grécia Antiga e anotar nomes e características de deuses, semideuses, heróis, ninfas, hamadríades. Fazia um fichamento resumido que depois ela aproveitava para o livro que estava escrevendo: o “Dicionário de Mitologia Grega”, publicado pela editora Cultrix em 1972 e adotado pela USP. À noite, ela ia lecionar novamente.

Hamadríades: ninfas da mitologia grega que protegiam espécies diferentes de árvores.

Ela falava muitos ditados e expressões populares? Quais?
   Gostava muito de usar algumas expressões que aprendeu com os caipiras com que conviveu e também com a avó.
“Dia de muito rir é véspera de muito chorar”.
“Não é porque o gatinho nasceu no forno que é biscoito”.
“Há sempre um chinelo velho para um pé doente”.

Qual você acha que é a importância do folclore em nossa vida?
   Folclore é o registro das nossas crenças e costumes, que vão se amoldando aos tempos. Portanto, folclore é a nossa história familiar, social. Representa o conjunto do que aprendemos e herdamos, e que nos dá estrutura para compreender o mundo, muitas vezes de maneira simbólica.

Como você faz para valorizar e divulgar os livros escritos por sua mãe, Ruth Guimarães?
   Costumo dar palestras de graça em escolas, academias de letras, clubes de leitura. Escrevo sempre artigos analisando as suas obras, uma vez que sou jornalista, mas também mestre em crítica literária. Sou o secretário-geral do Instituto Ruth Guimarães, fundado em 2019, e sou o responsável por cuidar das negociações de contratos de reedição e dos direitos autorais de livros dela em catálogo.
   Neste ano ainda, serão lançados dois livros inéditos que ela deixou, pela Faro Editorial: “Contos Negros” e “Contos Indígenas”. No ano que vem, 2021, serão lançados mais dois, também inéditos, pela mesma editora: “Contos de encantamento” e “Contos de Céu e Terra”. Todos contêm histórias recolhidas da tradição oral popular e que ela reconta em linguagem deliciosa. Vão aumentar o acervo de livros de histórias populares que ela produziu. A família tem estoque de vários desses livros, e pode vender a preços razoáveis. O endereço de contato é jmbotelho@uol.com.br.

Mais sobre Ruth Guimarães nas seguintes páginas do Facebook:
A Literatura De Ruth Guimarães
Espaço Ruth Guimarães e Botelho Netto
Instituto Ruth Guimarães - INRG

Veja a história “O Bode e a Onça”, inspirada em livro de Ruth Guimarães.

Agosto de 2020



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